CAPOEIRA ANGOLA: CULTURA POPULAR E O
JOGO DOS SABERES NA RODA
Pedro Rodolpho Jungers Abib
Origens de uma tradição
...........Desde a década de 1940, afirma Luiz Renato Vieira (1998), antropólogos como Herskovits têm apontado para a existência de “danças de combate” que trazem semelhanças com aquilo que conhecemos hoje como capoeira, não só na África - como o Muringue, em Madagascar -, como também em vários pontos da América, nos locais em que a diáspora negra se instalou. Relatos sobre o Mani em Cuba, e a Ladja na Martinica são dois exemplos dessas práticas. Sobre a Ladja, Vieira mostra a impressionante semelhança com a capoeira, verificada não somente do ponto de vista da execução de movimentos e golpes, como, o que é mais importante, o fato de congregar aspectos lúdicos, musicais (pratica-se ao som de atabaques) e de combate corporal. Ao criticar um certo “essencialismo” que busca na pureza da África perdida, a origem da capoeira enquanto uma estratégia daqueles que insistem na africanização dessa manifestação, Vieira ressalta que é importante considerar a história da capoeira no contexto mais amplo das manifestações afro-brasileiras, e mesmo afro-americanas, sobretudo aquelas que, como a capoeira atual, associavam dança, luta e jogo.
............A capoeira e os escravos do Rio de Janeiro do século XIX A capoeira no Rio de Janeiro assume feições muito peculiares, diferentemente de outras regiões do país. Ela é decisivamente praticada por escravos cativos, libertos ou forros, em condições bem específicas e num espaço urbano muito bem demarcado. Esses aspectos vão se apresentar como enquanto suas características mais importantes durante todo o século XIX.
Capoeira Baiana: a África que vem se mostrar
.........Antigamente, na capital baiana, havia capoeira onde existia uma quitanda ou uma venda de cachaça, com um largo bem em frente, propício ao jogo, nos conta Rego (1968). Ali, aos domingos, feriados e dias santos, ou após o trabalho, “...se reuniam os capoeiras mais famosos, a tagarelarem, beberem e jogarem capoeira. Contou-me mestre Bimba que a cachaça era a animação e os capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos donos das vendas, através de toque
especial de berimbau, que eles já conheciam” (p.35).
Infelizmente são poucos os documentos históricos existentes, que nos revelam pistas sobre como se manifestava a capoeira baiana durante o século IX e início do século XX. A grande maioria dos estudos e pesquisas sobre a capoeira nesse período, se restringe ao Rio de Janeiro, o que leva alguns pesquisadores, como Letícia Reis (2000), a afirmar que “a tradição da capoeira baiana é bastante recente, remontando no máximo a cerca de meio século” (p.89).
A autora refere-se, portanto, ao período em que já existiam registros históricos que pudessem sustentar a sua argumentação. O processo que Reis denomina como “invenção da tradição da capoeira baiana”, apoiando-se no termo cunhado por Eric Hobsbawn (1997), é levado a cabo, segundo ela, por uma série de elementos presentes no contexto do Estado Novo no Brasil,
como a necessidade de se criar uma identidade brasileira, e a conseqüente esportivização da capoeira como efeito desse processo, na tentativa de torná-la então, um “símbolo étnico nacional”.
........temos nos versos do poeta popular itaparicano Manoel Rozentino, falecido em 1897, a expressão de como se constituía o imaginário popular, sobre os capoeiras da época:
Eu amo o capadócio da Bahia
Esse eterno alegrete,
Que passa provocante em nossa frente,
Brandindo o seu cassete
(...)
Adoro o capoeira petulante,
O caibra debochado,
O terror do batuque, o desordeiro,
Que anda sempre de compasso ao lado.
(...)
Adoro o capadócio da Bahia,
Esse eterno patife,
Que gosta de bater numa pessoa,
Como quem bate bife.
.................
Ângelo Decânio Filho, o mestre Decânio, um dos mais antigos alunos do mestre Bimba,
em depoimento que nos concedeu, diz:
Os mais velhos que eu conheci, os meus ancestrais...alguns não sei nem o nome...eu chegava em Santo Amaro [da Purificação, no Recôncavo Baiano] e via jogando na rua...todos bons...nenhum inferior...cada um naquele instante, joga a capoeira que pode...amanhã vc não vai jogar a mesma capoeira que jogou hoje...então o que eu via era um alegria imensa....uma noção de parceria...havia um desencontro de pessoas...não gosta de um, não gosta de outro...isso havia...mas de um modo geral...a atmosfera de parceria, de alegria e de gostosura, de felicidade mesmo, então...o ancestral da capoeira é um homem feliz, vivo, alegre, sadio, (...) Essa é que seria a ancestralidade...daí que nasce a capoeira.
.............“Era a ‘vadiação’, palavra maldita pela crônica policial, sinônimo de contravenção, que se tornou predileta e significativa para os capoeiristas denominar as ‘funções’ de sambar e capoeirar31” (p.34).
Nas palavras do mestre Waldemar, transcrito por Abreu:
Antigamente a gente vadiava de terno branco, engomado, sapato impecável e não sujava, a menos que o adversário fosse desleal e metesse o sapato na gente; se me agarravam eu dizia: “não me suje não”; eu jogava de roupa branca, sapato de cor de leite, calça de linho tremendo; eu só sujava meus dedos, dava salto, fazia e acontecia (...) Quando eu tava jogando eu dizia: toque um angola dobrado [toque de berimbau]. É embolado, ninguém dá salto. É um por dentro do outro, passando, armando tesoura, se arriando todo, parece que tô vendo eu jogar (...) Nas minhas rodas não tinha barulho, porque quando eu cantava a rapaziada vinha toda render obediência assim. Me respeitavam muito os meus alunos. E nãotinha barulho porque eu olhava pra eles assim, eles vinham pro pé de mim e ninguém não brigava (ps.36-40).
.............No depoimento que nos foi concedido por João Pereira dos Santos, o mestre João
Pequeno, um relato sobre a academia de Pastinha:
Eu encontrei seu Pastinha na Praça da Sé...numa noite...eu já jogava capoeira lá...aí eu vi seu Pastinhajogando com um sr. ali que eu já conhecia das rodas...quando terminaram, seu Pastinha disse assim:
“...oh, eu quero organizar isso, eu quero organizar isso, e quem quiser, apareça lá no Bigode, ali quem vai da Sete Portas pra Fonte Nova” [referindo-se a um dos primeiros locais onde funcionava o Centro de Capoeira Angola de Pastinha]. Aí num domingo eu me arrumei...e fui pra lá...eu cheguei lá e nunca mais arriei (risos)...Eu me registrei lá como aluno e nunca mais deixei o mestre Pastinha, isso foi mais ou menos em 1945, e com ele eu convivi. (...) Na época que ele não podia mais jogar, de 1967 pra 68, ele dizia: “João, você toma conta disso porque eu vou morrer, mas eu morro somente o corpo... no espírito eu vivo, enquanto houver capoeira”.
..............Sobre Bimba, diz mestre Decânio (que foi acadêmico de medicina na época), em seu depoimento:
A regional nasceu quando os acadêmicos de medicina se aproximaram dele. Foi o encontro de duas culturas: uma ágrafa de Bimba, que era analfabeto, Ogan, criado dentro do candomblé, que encontrou Cirlânio(¿Cisnando?), acadêmico de medicina que chegou de Feira de Santana (...) Bimba liderou todo mundo...comandava nós todos com energia, com autoridade, com carisma imenso...porque se Bimba não fosse um homem extraordinário, não precisava liderar a gente, poxa !
..........
Relata mestre Pastinha, em seus manuscritos, segundo Decânio Filho:
Aberrê [famoso capoeira da época] então me convidou para ir apreciá-lo jogar na Gengibirra, com o que eu concordei. Em 23 de fevereiro de 1941 fiu a esse lugar como prometera a Aberrê, e com surpresa, o sr. Amorzinho, dono daquela capoeira, apertou a minha mão e disse: “há muito que eu o esperava pra lhe entregar essa capoeira pro senhor mestrar”. Eu ainda tentei me esquivar me desculpando, mas terminando a palavra o sr. Antonio Maré [Totonho de Maré, outro famoso capoeira] me disse: não há jeito não, Pastinha, é você mesmo que vai mestrar isso aqui.
http://biblioteca.universia.net/ficha.do?id=3273108
JOGO DOS SABERES NA RODA
Pedro Rodolpho Jungers Abib
Origens de uma tradição
...........Desde a década de 1940, afirma Luiz Renato Vieira (1998), antropólogos como Herskovits têm apontado para a existência de “danças de combate” que trazem semelhanças com aquilo que conhecemos hoje como capoeira, não só na África - como o Muringue, em Madagascar -, como também em vários pontos da América, nos locais em que a diáspora negra se instalou. Relatos sobre o Mani em Cuba, e a Ladja na Martinica são dois exemplos dessas práticas. Sobre a Ladja, Vieira mostra a impressionante semelhança com a capoeira, verificada não somente do ponto de vista da execução de movimentos e golpes, como, o que é mais importante, o fato de congregar aspectos lúdicos, musicais (pratica-se ao som de atabaques) e de combate corporal. Ao criticar um certo “essencialismo” que busca na pureza da África perdida, a origem da capoeira enquanto uma estratégia daqueles que insistem na africanização dessa manifestação, Vieira ressalta que é importante considerar a história da capoeira no contexto mais amplo das manifestações afro-brasileiras, e mesmo afro-americanas, sobretudo aquelas que, como a capoeira atual, associavam dança, luta e jogo.
............A capoeira e os escravos do Rio de Janeiro do século XIX A capoeira no Rio de Janeiro assume feições muito peculiares, diferentemente de outras regiões do país. Ela é decisivamente praticada por escravos cativos, libertos ou forros, em condições bem específicas e num espaço urbano muito bem demarcado. Esses aspectos vão se apresentar como enquanto suas características mais importantes durante todo o século XIX.
Capoeira Baiana: a África que vem se mostrar
.........Antigamente, na capital baiana, havia capoeira onde existia uma quitanda ou uma venda de cachaça, com um largo bem em frente, propício ao jogo, nos conta Rego (1968). Ali, aos domingos, feriados e dias santos, ou após o trabalho, “...se reuniam os capoeiras mais famosos, a tagarelarem, beberem e jogarem capoeira. Contou-me mestre Bimba que a cachaça era a animação e os capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos donos das vendas, através de toque
especial de berimbau, que eles já conheciam” (p.35).
Infelizmente são poucos os documentos históricos existentes, que nos revelam pistas sobre como se manifestava a capoeira baiana durante o século IX e início do século XX. A grande maioria dos estudos e pesquisas sobre a capoeira nesse período, se restringe ao Rio de Janeiro, o que leva alguns pesquisadores, como Letícia Reis (2000), a afirmar que “a tradição da capoeira baiana é bastante recente, remontando no máximo a cerca de meio século” (p.89).
A autora refere-se, portanto, ao período em que já existiam registros históricos que pudessem sustentar a sua argumentação. O processo que Reis denomina como “invenção da tradição da capoeira baiana”, apoiando-se no termo cunhado por Eric Hobsbawn (1997), é levado a cabo, segundo ela, por uma série de elementos presentes no contexto do Estado Novo no Brasil,
como a necessidade de se criar uma identidade brasileira, e a conseqüente esportivização da capoeira como efeito desse processo, na tentativa de torná-la então, um “símbolo étnico nacional”.
........temos nos versos do poeta popular itaparicano Manoel Rozentino, falecido em 1897, a expressão de como se constituía o imaginário popular, sobre os capoeiras da época:
Eu amo o capadócio da Bahia
Esse eterno alegrete,
Que passa provocante em nossa frente,
Brandindo o seu cassete
(...)
Adoro o capoeira petulante,
O caibra debochado,
O terror do batuque, o desordeiro,
Que anda sempre de compasso ao lado.
(...)
Adoro o capadócio da Bahia,
Esse eterno patife,
Que gosta de bater numa pessoa,
Como quem bate bife.
.................
Ângelo Decânio Filho, o mestre Decânio, um dos mais antigos alunos do mestre Bimba,
em depoimento que nos concedeu, diz:
Os mais velhos que eu conheci, os meus ancestrais...alguns não sei nem o nome...eu chegava em Santo Amaro [da Purificação, no Recôncavo Baiano] e via jogando na rua...todos bons...nenhum inferior...cada um naquele instante, joga a capoeira que pode...amanhã vc não vai jogar a mesma capoeira que jogou hoje...então o que eu via era um alegria imensa....uma noção de parceria...havia um desencontro de pessoas...não gosta de um, não gosta de outro...isso havia...mas de um modo geral...a atmosfera de parceria, de alegria e de gostosura, de felicidade mesmo, então...o ancestral da capoeira é um homem feliz, vivo, alegre, sadio, (...) Essa é que seria a ancestralidade...daí que nasce a capoeira.
.............“Era a ‘vadiação’, palavra maldita pela crônica policial, sinônimo de contravenção, que se tornou predileta e significativa para os capoeiristas denominar as ‘funções’ de sambar e capoeirar31” (p.34).
Nas palavras do mestre Waldemar, transcrito por Abreu:
Antigamente a gente vadiava de terno branco, engomado, sapato impecável e não sujava, a menos que o adversário fosse desleal e metesse o sapato na gente; se me agarravam eu dizia: “não me suje não”; eu jogava de roupa branca, sapato de cor de leite, calça de linho tremendo; eu só sujava meus dedos, dava salto, fazia e acontecia (...) Quando eu tava jogando eu dizia: toque um angola dobrado [toque de berimbau]. É embolado, ninguém dá salto. É um por dentro do outro, passando, armando tesoura, se arriando todo, parece que tô vendo eu jogar (...) Nas minhas rodas não tinha barulho, porque quando eu cantava a rapaziada vinha toda render obediência assim. Me respeitavam muito os meus alunos. E nãotinha barulho porque eu olhava pra eles assim, eles vinham pro pé de mim e ninguém não brigava (ps.36-40).
.............No depoimento que nos foi concedido por João Pereira dos Santos, o mestre João
Pequeno, um relato sobre a academia de Pastinha:
Eu encontrei seu Pastinha na Praça da Sé...numa noite...eu já jogava capoeira lá...aí eu vi seu Pastinhajogando com um sr. ali que eu já conhecia das rodas...quando terminaram, seu Pastinha disse assim:
“...oh, eu quero organizar isso, eu quero organizar isso, e quem quiser, apareça lá no Bigode, ali quem vai da Sete Portas pra Fonte Nova” [referindo-se a um dos primeiros locais onde funcionava o Centro de Capoeira Angola de Pastinha]. Aí num domingo eu me arrumei...e fui pra lá...eu cheguei lá e nunca mais arriei (risos)...Eu me registrei lá como aluno e nunca mais deixei o mestre Pastinha, isso foi mais ou menos em 1945, e com ele eu convivi. (...) Na época que ele não podia mais jogar, de 1967 pra 68, ele dizia: “João, você toma conta disso porque eu vou morrer, mas eu morro somente o corpo... no espírito eu vivo, enquanto houver capoeira”.
..............Sobre Bimba, diz mestre Decânio (que foi acadêmico de medicina na época), em seu depoimento:
A regional nasceu quando os acadêmicos de medicina se aproximaram dele. Foi o encontro de duas culturas: uma ágrafa de Bimba, que era analfabeto, Ogan, criado dentro do candomblé, que encontrou Cirlânio(¿Cisnando?), acadêmico de medicina que chegou de Feira de Santana (...) Bimba liderou todo mundo...comandava nós todos com energia, com autoridade, com carisma imenso...porque se Bimba não fosse um homem extraordinário, não precisava liderar a gente, poxa !
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Relata mestre Pastinha, em seus manuscritos, segundo Decânio Filho:
Aberrê [famoso capoeira da época] então me convidou para ir apreciá-lo jogar na Gengibirra, com o que eu concordei. Em 23 de fevereiro de 1941 fiu a esse lugar como prometera a Aberrê, e com surpresa, o sr. Amorzinho, dono daquela capoeira, apertou a minha mão e disse: “há muito que eu o esperava pra lhe entregar essa capoeira pro senhor mestrar”. Eu ainda tentei me esquivar me desculpando, mas terminando a palavra o sr. Antonio Maré [Totonho de Maré, outro famoso capoeira] me disse: não há jeito não, Pastinha, é você mesmo que vai mestrar isso aqui.
http://biblioteca.universia.net/ficha.do?id=3273108
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